A proposta de Emenda à Constituição Federal nº 03, de 2022, trata de revogação do inciso VII, do caput, do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 e do § 3º, do artigo 49 do Ato das Disposições Transitórias e dá outras providências.
O inciso VII, do artigo 20 da Constituição Federal de 1988 preceitua que os terrenos de marinha são bens da União. O parágrafo 3º, do artigo 49 do Ato das Disposições Transitórias estabelece que a enfiteuse continuará sendo aplicada aos terrenos de marinha e seus acrescidos, situados na faixa de segurança, a partir da orla marítima.
Analisando os termos da Proposta de Emenda Constitucional em comento observa-se claramente a pretensão do legislador de extinção dos terrenos de marinha e de transmissão da propriedade destes bens imóveis da União para aquelas pessoas físicas ou jurídicas, privadas ou públicas, que estejam na legítima posse dos terrenos e sejam inscritos no órgão de gestão (Secretaria do Patrimônio da União – SPU) até a data da publicação da Emenda. A proposta beneficia, também, os ocupantes não inscritos, com comprovada boa-fé, cuja posse do imóvel seja de pelo menos cinco anos antes da data da publicação da Emenda Constitucional. Prevê, ainda, a extinção da enfiteuse, do foro, das taxas de ocupação, do laudêmio que geram receita para a União, advinda da obrigação dos ocupantes cadastrados na SPU de pagar pelo uso do terreno de marinha e pela transferência do domínio útil do imóvel a título sucessório ou inter vivos (compra e venda, doação, por exemplo).
Sabe-se que toda lei, toda norma jurídica, reflete as necessidades políticas, econômicas e sociais da época em que é criada; afinal, a ciência jurídica é um dos meios de adaptação social e o dever ser imposto pela legislação objetiva garantir o bem-estar da coletividade, a ordem, a justiça e a segurança de todos na sociedade, bem como os limites necessários para a saudável e a pacífica convivência social. Além disto, a ciência jurídica também visa promover o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos, público e privado, para assegurar um convívio social harmonioso, onde os indivíduos possam exercer suas atividades com segurança e dentro dos limites da lei.
Com relação aos terrenos de marinha, a Constituição Federal do ano de 1988 e os Atos das Disposições Transitórias recepcionaram um regramento existente no Brasil desde o ano de 1831, época do Império. Estes bens da União surgiram por influência do ordenamento jurídico português, que fez da enfiteuse uma forma de colonização, de ordenação da ocupação da terra. Os terrenos de marinha, como propriedade da União, como forma de defesa nacional, de garantia do uso da orla marítima pelos militares, seus pelotões, pelos pescadores, pelo uso comum do povo e até mesmo para a preservação ambiental.
De acordo com o artigo 2º do Decreto-Lei 9760/1946, “são terrenos de marinha, aqueles com uma profundidade de 33 metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição da linha do preamar-médio do ano de 1831: a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios e lagoas, até onde se faça sentir a influência das marés; b) os que contornam as ilhas situadas em zonas onde se faça sentir a influência das marés. Parágrafo único. Para efeitos deste artigo a influência das marés é caracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelo menos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.”
Como se vê, já se passaram mais de 193 (cento e noventa e três) anos e a “linha” do preamar médio do ano de 1831, ou seja, a linha da média das marés cheias durante o ano de 1831, ainda é considerada como base para definir geograficamente uma faixa de terra de segurança e interesse nacional e ambiental. Ocorre que as marés não são mais as mesmas, aumentou o nível das águas dos oceanos e, provavelmente, em se fazendo um levantamento geodésico, não existem mais os terrenos de marinha geograficamente idealizados por uma linha imaginária idealizada mediante uma situação fática do ano de 1831.
Por certo houve o avanço das marés, houve a mudança da linha média das marés cheias nestes 193 anos corridos, houve, ainda, a alteração no curso de rios influenciados pelas marés. Porém, importante lembrar que ainda prevalece o espírito de segurança, de defesa nacional e de preservação ambiental do território brasileiro. A segurança é uma prerrogativa constitucional indisponível, cabendo ao Estado implementar políticas públicas que garantam a segurança local e soberana. Também é garantido constitucionalmente o meio ambiente equilibrado, como um direito de todos e um dever também de todos.
A partir da lei de 15/11/1831 para uma pessoa utilizar um terreno de marinha é necessário o pagamento à União de taxas de ocupação, foro, laudêmio. E, durante todos estes anos, estas receitas são auferidas pela União.
No ano de 1998 surgiu a Lei Federal nº 9.636 que além de dispor sobre o aforamento dos terrenos de marinha, da situação dos ocupantes e da cessão de uso onerosa, trata da permissão de uso e da alienação, seja por meio de venda, permuta ou doação destes imóveis. A alienação depende de autorização do Presidente da República ou, por delegação, do Ministro da Fazenda, precedida de parecer da Secretaria do Patrimônio da União – SPU. Segundo esta lei, a alienação só é permitida nas situações em que não há interesse público, econômico ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto à preservação ambiental e à defesa nacional, no desaparecimento do vínculo da propriedade.
A referida Lei Federal demonstra o poder do executivo de manter, ou não, o terreno de marinha em seu patrimônio, com base no interesse público, econômico, social, na preservação ambiental e na defesa nacional. O projeto de Emenda Constitucional possui um texto taxativo, objetivo, que propõe simplesmente a extinção do terreno de marinha e a transferência do imóvel da União para a propriedade plena e privada do usuário. Chama a atenção de forma preocupante o fato de não constar na Proposta de Emenda Constitucional nº 03/2022 qualquer menção à garantia da segurança, da defesa nacional ou da preservação ambiental da costa oceânica e de áreas de uso comum do povo, a exemplo, as praias.
Diante da existência de um regramento constitucional e de uma lei federal ordinária que tratam da matéria – terrenos de marinha – localização – uso – manutenção – possibilidade de alienação – não vislumbro a necessidade de aprovação deste texto proposto de Emenda Constitucional nº 03/2022.
A condicionante geográfica para caracterizar um imóvel como terreno de marinha está totalmente prejudicada porque o avanço do mar sobre os terrenos de marinha baseados na linha do preamar médio do ano de 1831, ocasionam certamente o sumiço deste imóvel, por estarem dentro do mar, ou do rio e da lagoa que sofram a influência da maré. Não é coerente manter um terreno de marinha, ou extinguir um terreno de marinha, sem proceder previamente a análise técnica de demarcação geodésica de toda a costa oceânica brasileira, com base na linha do preamar médio de 1831. E este trabalho, de fato, não é realizado pela SPU de maneira clara. Não é o simples fato de um terreno confrontar com o oceano ou costa
lagunar que o determina como terreno de marinha ou acrescido de marinha. Como dito, é necessário que seja feita a demarcação precisa, a prova técnica de que não houve o avanço do mar o suficiente para a perda da propriedade pela União. Os proprietários de terrenos alodiais (vizinhos aos terrenos de marinha, de propriedade privada) têm que ter o cuidado de não serem cobrados pela União pelo uso do imóvel, como se fosse um terreno de marinha.
A definição física, patrimonial, do terreno de marinha como bem da União, baseada em uma situação de fato do ano de 1831 e de uma lei do ano de 1831 necessita de uma redefinição, de acordo com a realidade dos últimos anos, mas sem ignorar a importância ambiental, socioeconômica e de gerenciamento das zonas costeiras em prol da segurança do país e do povo brasileiro.
O Brasil ainda precisa da garantia de proteção de seu território, de sua defesa nacional, mesmo que seja um país de paz por todos estes anos, precisa ser rigoroso para a preservação do meio ambiente equilibrado e para a garantia do bem-estar de todos os seres vivos. Não deve haver uma emenda constitucional que pura e simplesmente extinga um bem da União, sem prever uma regulamentação, a fim de se evitar abusos de poder, abusos de propriedade, enriquecimento indevido, limitação de acesso litoral por todos os cidadãos e prejuízo socioeconômico e ambiental.